segunda-feira, 28 de março de 2011

Crônicas

O desgoverno dos pardais (Marta Eugênia)
As pessoas conversavam sobre o calor na mesa vizinha a minha aqui no café. Saíram e deram lugar a um casal. É interessante como a praça continua com a mesma mania de ser chamada de Marques da Silva. Aquela árvore centenária que permanece plantada entre o café e a floricultura ainda abriga os pardais. Mas o antigo cinema desapareceu dando lugar a uma loja popular de roupas.
Os pardais são comuns por aqui, são aves cosmopolitas e cheias de barulho até que a noite os sossegue.
Temo pela árvore e pelos pardais, uma velha mania da praça. A cidade está envelhecendo ainda mais e sofrendo alterações na memória. Algumas “manias” vão realmente desaparecendo. Outras não.
Ontem, quando o sol avisava que estava a caminho do Japão, os pardais estavam enlouquecidos. No entanto, alguém bateu as mãos uma na outra e eles fizeram silêncio por dois ou três segundos. Em seguida, voltaram para seus desesperos. Foi engraçado e intrigante. Contudo, a tarde escondeu seus dentes na boca quando um homem de quase meia idade, uniformizado surgiu de repente esbravejando contra o governador do nosso Estado de cada dia. Xingou e falou para todos nós ali naquele momento no café o quanto sofria por ser um policial civil, ressaltou indignado sobre o salário baixo e humilhante e expôs situações de sua intimidade financeira. Sentou-se um pouco, pôs as mãos sobre o rosto e chorou. Logo depois, levantou-se enxugando o rosto e foi embora. Ficamos ali por alguns instantes como os pardais ao ouvir um bater com as palmas das mãos.

Poema

Uma noite dessas (Marta Eugênia)
 Meus filhos dormem como se nunca tivessem "errado".
 Então, na porta do quarto recai sobre mim
 um modo adocicado de se abrir um verso
 bem alimentado e capaz de grandes feitos.
 Ah, o amor tem as faces rosadas de tanto pinote,
 pula os muros porque é moleque
 e compreende as possibilidades de uma flor
 em pleno campo minado.
 Não suporto sozinha dores tão bonitas...
 Por isso me valho dos versos para salvar minha pele
 de qualquer noite do dia que passa por dentro
 da minha história comum.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Conversando com os Poemas

Arapiraca, 12 ou 13 de dezembro de 2011. Porque qualquer coisa que se começa, inicia-se em algum lugar do tempo registrado pela suposta realidade humana. Porque cremos contá-lo com números nos relógios, calendários, nossos materiais concretos. Porque as datas sugerem controle do medo de um barco à deriva no grande mar que é viver.


Mulher ao cair da tarde – Adélia Prado

Ó Deus,
não me castigues se falo
minha vida foi tão bonita!
Somos humanos,
nossos verbos têm tempos,
não são como o Vosso, eterno.

Bebemos, comemos, pensamos, oramos, tocamos, ouvimos, sonhamos, acordamos, paramos... Mas, como todos os humanos vivos, morremos. “Nossos verbos têm tempos”, como afirma nos versos a poetisa Adélia prado.

Ao rogar a Deus que não a castigue por afirmar “minha vida foi tão bonita” Adélia utiliza a posição do verbo “ser” no pretérito perfeito do modo indicativo nos versos, assim, aponta a possibilidade de indicar a beleza causada pela juventude. O cair da tarde sugere um por de sol. Uma mulher no por do sol, é uma mulher mais experiente, mais velha, mais perto da noite, portanto, aproximada da morte. O tema da morte é bastante usado por Adélia em outros poemas e esta palavra sugere uma outra: vida. Sugere ainda que talvez houvesse mais vida na juventude, mais beleza, apesar de não constar a palavra “morte” no poema. Por pertencer também ao verbo “ir”, pois a conjugação deste verbo é igual ao verbo “ser” no mesmo tempo acima citado, abre-se uma perspectiva de “ida” ao passado para a comparação com a situação do presente. Nesse sentido, causa uma idéia filosófica de movimento em relação ao tempo. Uma astúcia para poucos no manuseio da língua. Ela foi porque era e foi porque ia. Dizendo de outro modo, ainda mais descontraído com a linguagem, ela parece me dizer que teve a vida tão bonita (foi do verbo ser) e que entregou-se e viveu essa beleza com prazer (foi do verbo ir).

Ao usar “falo” nos primeiros versos do poema, o verbo está na primeira pessoa e no presente do modo indicativo, o que manifesta a força do presente, o agora.
Aqui, beleza e juventude ganham um grau de intimidade muito forte na linha do tempo por uma questão da percepção do “ocaso” e não do “acaso”. É como se atentasse para o uso de um pretérito perfeito em busca do pretérito imperfeito, afinal, este último possui características que avançam no tempo e podem voltar a acontecer, daí a “imperfeição”.

Contudo, vale a pena sair de tempo dos rastreamentos técnicos para as pernas que a beleza assume em passear na poesia. E então respirar a religiosidade presente no eu - lírico quando usa o vocativo e roga a Deus para não ser castigada por sentir saudade da juventude, da beleza que acompanha a tenra idade. Roga para que não haja punição por se dar colo, retendo o pretérito para não se afastar do que é bonito. E escreve de um modo poético tão sentimental que a velhice vai para o outro lado da rua, longe da solidão, das fragilidades do corpo e assume um ar saudoso, melancólico, bonito. O belo e o jovem mesclam-se no poema e adquirem mais vigor juntos, pois lá no pretérito do ser humano existe um coração que bate pela alegria de viver. E podemos atravessar no tempo pela memória.
Comparar nosso “tempo” com o tempo divino nos enche de poderes para as lembranças, já que não somos eternos. No entanto, somos mnemônicos, temos o dom e o direito à saudade, sentimento que não vale para todos os “bichos”. Entregar-se a lembranças é um meio de nos consolar e caminhar ao lado da esperança. Lembrar é vagar na estrada do tempo, sair do lugar mental do agora, puxar o freio de mão e fazer o retorno para onde deixamos o que vivemos de bonito. E não custa nada aproveitar neste momento Chico Buarque quando refletiu: “a saudade é o revés de um parto”.
No interior de Minas gerais, em Divinópolis, nasceu Adélia prado no ano de 1935. Ela tinha mesmo que ser do “interior” e de inaugurar-se num lugar onde o nome deriva da raiz de algo “divino”. E bem viva no corpo e na alma, mas sua poesia é exposta de um modo tão “perfeito” que já experimenta garantias de imortalidade.

Os dois lados do horizonte ou os dois lados para uma janela

O horizonte costumava esperá-lo todas as tardes na varanda. Olhavam-se a princípio como a um cumprimento. Depois se entregavam um ao outro de uma maneira tão inefável que só a poesia tentaria algo léxico, mesmo assim, por meios metafóricos. O silêncio do amor, das entregas.

          Uma camisa de xadrez azul (quem sabe influência do horizonte) costumava acompanhá-lo junto com uma calça cinza e cheia de “furinhos” conseguidos pelo cigarro. O papel de seda e o fumo também faziam parte desse ritual vespertino (explicação para os furinhos).

          Era um homem que só usava as palavras quando a situação exigia-lhe uma posição de comunicação com outras pessoas. ‘Vá pedir a seu pai’, retrucava a mãe quando um dos filhos queria algo e que ela, no fundo, não aprovava. Ela sabia que ele demorava-se a responder, de modo que desistíamos muitas vezes por deter na boca o gosto estranho da espera. Dava pão, água e diversas palavras aos mendigos, contudo. E quando falava, dizia.

          Acabo de recordar agora quando ele resolveu falar “dizendo”, dirigiu-se a mim ao ver-me tristonha por estar preocupada com algumas contas pra pagar: ‘não leve a vida tão a sério, minha filha. A gente trabalha tanto e corre atrás desse bendito papel colorido (era como ele chamava o dinheiro) só pra transformar ele em comida pra virar cocô, bebida pra virar mijo e coisa pra virar lixo’. Sorriu um pouco e correu rumo ao fogão onde o leite já fervendo, terminara por derramar.

          Os gatos o cobiçavam com veemência, pois pela manhã, ele participava de um outro ritual (dentre outros) de invenção cotidiana: limpava e cortava a carne para o almoço. Os gatos o amavam por isso e já davam ignição na felicidade assim que ouviam o barulho da faca sendo amolada na pedra.

          Esse era o “assim” de como meu pai vivia em parte.

          E a menina retraída que habitava em mim, amava-o com um amor de livro guardado. Queria também aquela atenção dada aos esmeros revelados naquele amor distribuído no barulho da faca em atrito com a pedra, nos olhos alcançados pelos gatos, no passeio da faca limpando e depois cortando a carne. O barulho do amor, das entregas, agora.

          É engraçado como as janelas também me lembram meu pai. Ele as abria pela manhã para que o dia clareasse o quarto, a sala, os cômodos possíveis da casa. Ele nem desconfiava de que havia dentro de mim um vão possível de ser clareado com um simples abrir de janelas. ‘O sol já foi se deitar’, disse ele uns dias antes de ir conferir e não voltar mais. E fechou a janela.

          Enfim, o livro teve que ser aberto. Uma amiga havia dado a mim de presente no meu aniversário de catorze anos. Descobri a paixão secreta que meu pai tinha por palavras. Disse-as uma a uma completando uma história engraçada, nordestina melancólica.  Foi assim que nos amamos por muito tempo em palavras, o resto do amor vinha dos exercícios práticos que as palavras incitam.

          Quando fui convidada há alguns anos para recitar num evento cultural num lugar público da pequena cidade onde moro, acho que uma voz que vinha de uma janela do sol disse ao meu ouvido e eu repeti no microfone:

Certas coisas na janela

Meu pai, homem de poucas palavras,
possuía uma certa ingenuidade cabocla,
mas nós víamos bússola em seus olhos.
Lembro-me de suas risadas
quando pra ele eu lia sobre um auto
e uma compadecida.
Depois, lembrávamos de nossa terra.
Histórias de João cambão da Costela do Cão
que passava na rua
e a criançada gritava em refrão:
‘João cambão, Costela do Cão,
trocou a mulher por um pedaço de pão’.

Certas coisas sempre voltam
quando abro a janela.