Conversando com os Poemas
Arapiraca, 12 ou 13 de dezembro de 2011. Porque qualquer coisa que se começa, inicia-se em algum lugar do tempo registrado pela suposta realidade humana. Porque cremos contá-lo com números nos relógios, calendários, nossos materiais concretos. Porque as datas sugerem controle do medo de um barco à deriva no grande mar que é viver.
Mulher ao cair da tarde – Adélia Prado
Ó Deus,
não me castigues se falo
minha vida foi tão bonita!
Somos humanos,
nossos verbos têm tempos,
não são como o Vosso, eterno.
Bebemos, comemos, pensamos, oramos, tocamos, ouvimos, sonhamos, acordamos, paramos... Mas, como todos os humanos vivos, morremos. “Nossos verbos têm tempos”, como afirma nos versos a poetisa Adélia prado.
Ao rogar a Deus que não a castigue por afirmar “minha vida foi tão bonita” Adélia utiliza a posição do verbo “ser” no pretérito perfeito do modo indicativo nos versos, assim, aponta a possibilidade de indicar a beleza causada pela juventude. O cair da tarde sugere um por de sol. Uma mulher no por do sol, é uma mulher mais experiente, mais velha, mais perto da noite, portanto, aproximada da morte. O tema da morte é bastante usado por Adélia em outros poemas e esta palavra sugere uma outra: vida. Sugere ainda que talvez houvesse mais vida na juventude, mais beleza, apesar de não constar a palavra “morte” no poema. Por pertencer também ao verbo “ir”, pois a conjugação deste verbo é igual ao verbo “ser” no mesmo tempo acima citado, abre-se uma perspectiva de “ida” ao passado para a comparação com a situação do presente. Nesse sentido, causa uma idéia filosófica de movimento em relação ao tempo. Uma astúcia para poucos no manuseio da língua. Ela foi porque era e foi porque ia. Dizendo de outro modo, ainda mais descontraído com a linguagem, ela parece me dizer que teve a vida tão bonita (foi do verbo ser) e que entregou-se e viveu essa beleza com prazer (foi do verbo ir).
Ao usar “falo” nos primeiros versos do poema, o verbo está na primeira pessoa e no presente do modo indicativo, o que manifesta a força do presente, o agora.
Aqui, beleza e juventude ganham um grau de intimidade muito forte na linha do tempo por uma questão da percepção do “ocaso” e não do “acaso”. É como se atentasse para o uso de um pretérito perfeito em busca do pretérito imperfeito, afinal, este último possui características que avançam no tempo e podem voltar a acontecer, daí a “imperfeição”.
Contudo, vale a pena sair de tempo dos rastreamentos técnicos para as pernas que a beleza assume em passear na poesia. E então respirar a religiosidade presente no eu - lírico quando usa o vocativo e roga a Deus para não ser castigada por sentir saudade da juventude, da beleza que acompanha a tenra idade. Roga para que não haja punição por se dar colo, retendo o pretérito para não se afastar do que é bonito. E escreve de um modo poético tão sentimental que a velhice vai para o outro lado da rua, longe da solidão, das fragilidades do corpo e assume um ar saudoso, melancólico, bonito. O belo e o jovem mesclam-se no poema e adquirem mais vigor juntos, pois lá no pretérito do ser humano existe um coração que bate pela alegria de viver. E podemos atravessar no tempo pela memória.
Comparar nosso “tempo” com o tempo divino nos enche de poderes para as lembranças, já que não somos eternos. No entanto, somos mnemônicos, temos o dom e o direito à saudade, sentimento que não vale para todos os “bichos”. Entregar-se a lembranças é um meio de nos consolar e caminhar ao lado da esperança. Lembrar é vagar na estrada do tempo, sair do lugar mental do agora, puxar o freio de mão e fazer o retorno para onde deixamos o que vivemos de bonito. E não custa nada aproveitar neste momento Chico Buarque quando refletiu: “a saudade é o revés de um parto”.
No interior de Minas gerais, em Divinópolis, nasceu Adélia prado no ano de 1935. Ela tinha mesmo que ser do “interior” e de inaugurar-se num lugar onde o nome deriva da raiz de algo “divino”. E bem viva no corpo e na alma, mas sua poesia é exposta de um modo tão “perfeito” que já experimenta garantias de imortalidade.