domingo, 26 de fevereiro de 2012

Ela

         Ela estava atrasada, os outros já pareciam bem avançados nos trabalhos de Literatura. Não lembro mais de seu nome mas é impossível esquecer a carga de emoção partilhada na sala no outro dia na abertura da aula.
           Ela explicava impetuosamente em voz e gestos sobre sua pressa e dificuldade ao perceber a hora, bem na praça Marques da silva, ainda enfrentaria algumas quadras para chegar à escola. Persuadia-me aquela adolescente para que eu abrisse um pouco a porta da oportunidade no intuito de não perder pontos na disciplina em questão. Foi assim que nasceu a situação que gerou, entre outras coisas, esta crônica. A chance estava dada e respondi-lhe com um alea jacta est enquanto ela fazia uma cara interrogativa. Abri o livro de Adélia Prado aleatoriamente e empreendi-lhe alguns critérios de oralidade. A aula do dia seguinte seria aberta com o poema "Endecha". Ressaltei sobre a memorização do poema e de como ela deveria recitá-lo. É claro que ela aceitou sem restrições.
        Ela já se constava na sala assim que eu cheguei, era cedo e eu já tinha recebido o sol pelas ruas  movimentadas por adolescentes uniformizados, adultos passeando com seus cachorros na Praça Luiz Pereira Lima, dentre outros rituais que o cotidiano sabe contar. Os outros alunos foram chegando também. Pedi silêncio e ela me puxava pela manga da blusa mostrando seu nervosismo de primeira viagem enaltecendo que seria difícil pra ela olhar para todos aqueles rostos a fitá-la. Disse-lhe que poderia fechar os olhos enquanto recitava, seria menos complicado. E ela acreditou e iniciou o poema com a voz ainda meio trêmula:

Endecha

Embora a velha roseira insista neste agosto
e confirmem o recomeço estas mulheres grávidas,
eu sofro de um cansaço, intermitente como certas febres.
Me acontece lavar os cabelos e ir secá-los ao sol,
desavisada. Ocorre até que eu cante.
Mas pousa na canção a negra ave e eu desafino rouca,
em descompasso, uma perna mais curta,
a ausência povoando todos os meus cômodos
a lembrança endurecida no cristal
de uma pedra na uretra.

          Ela estava no pouso da canção da negra ave e desafinando rouca, quando lágrimas escorreram de suas faces. A sala silenciosamente hipnotizada pela jovem, como se fosse uma canção que pertencesse a todos eles. E daquele modo pertencia mesmo. Aquilo tudo era nosso para sempre. Havia no momento um grande beijo da vida e ela estava no meio de nós. Foi lindo.
          Ela terminou e abraçou-me dizendo o quanto era belo aquele poema e o quanto ele entrou e foi saindo pela sua boca como se tivesse vindo de outro lugar infinito dela mesma.Jamais esquecerei, pois dias assim não cabem no mundo dos esquecidos.
          Ela já deve estar agora bem mais velha, assim como eu envelheci no tempo dos humanos e esse poema ainda deve rondar seus passos mentais, do mesmo modo que veio até aqui. Talvez ela com seu poema conquistado ande por outros lugares da literariedade ou mesmo da poeticidade dentro ou fora das palavras.
          Ela ensinou-me, como educadora que estou, que não preciso cair nos braços do senso comum para cansar-me. Nem acreditar que a poesia é instrumento para tolos, ou melhor ainda, que os tolos são imprescindíveis, pois o chão da realidade aprendida por nós merece um desenlace macio dos pés.
Ela ajudou-me a consolidar o pensamento de que a utopia merece ocupar um lugar veemente em nossas vidas, afinal, tantas mentiras ou verdades concretas de agora já foram um dia apenas sonhos. Porque transcenderam no espaço e no tempo.