quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Bioagradável (Marta Eugênia)



Minha mãe costumava dizer que não entendia como uma menina de quatro ou cinco anos tinha a paciência de sentar-se numa pedra e ficar lá por horas a olhar a natureza. Eu dava risada desses comentários. Mas sempre tive essa mania mesmo. De vez em quando me pego parada, cismada como se tivesse um capim na boca, e mesmo morando em apartamento, aproveito um pedaço apenas da árvore, do céu, oferecidos pelas janelas ou pelo espaço aberto na área de serviço.
É intrigante essa atitude de olhar pra trás. Ou mesmo de ser despertada no gerúndio por algo novo, diferente. Pra mim, geralmente esbarro com a poesia. As cenas, as palavras, os gestos que me tomam algumas vezes no cotidiano injetam em mim, de algum modo, o soro da poesia.
Mas nem sempre estive ciente disso. Só de uns anos pra cá. Eu não sabia que a poesia estava de olho em mim. Isso foi acontecendo aos poucos. Eu adoro ler desde criança, aprendi a ler cedo e naquele tempo, as crianças só freqüentavam a escola a partir dos sete anos. E eu ficava torcendo pra atingir logo tal idade e ir pra escola.
Tive uma professora de Português que levou pra sala, na minha quarta série (fundamental) a música do Chico Buarque: A Banda. Aquilo me emocionou tanto! Além disso, antes de ir pra escola em Arapiraca, interior de Alagoas, havia um programa na rádio onde o Zé do Rojão balançava um chocalho no intuito de despertar os moradores da região, os ouvintes. Contudo, despertava mesmo era a poesia dentro de mim. Ele recitava poemas de Zé da Luz, logo depois. Relíquias da vida.
Eu já tive momentos mambembes com o Palhaço Biribinha e seu circo engraçado. Onde muitas vezes conversamos sobre teatro e a Farsa (teatro de costumes) que era apresentada no circo de seu pai em outros tempos.
Já tive meu pai no quintal da casa pedindo paciência a um gato com fome, enquanto ele cortava a carne em tirinhas.
Já tive minha avó colhendo quiabos na horta e ralando comigo sobre meus desastres de catar nos monturos pedaços de vidro (garrafas quebradas) e cortando o dedo polegar. Ela nem sabia que tais cacos tinham ares de diamante.
Já tive minha mãe dizendo à enfermeira aos sussurros: é boa menina, ela faz poesia, coisa que não dá dinheiro.
Já tive primas que no meio das brincadeiras, nos agarrávamos pelos cabelos e aos socos e xingamentos por eu ser uma neta bastarda. Logo depois, toda arranhada eu perguntava a minha vó enquanto ela colocava remédio no meu nariz: o que é bastarda, hem vó?
Já tive um amor que recitou pra mim a letra de uma música do Gonzaguinha.
Já tive um poema roubado.
Já tive um crucifixo italiano doado por uma amiga que eu adoro e que já me mandou tomar naquele lugar quando brigamos e que me perguntou onde estava o crucifixo ao me acompanhar ao hospital quando adoeci.
Já tive poemas e inocências importantes.
Hoje, tenho muitos poemas por fazer.
Hoje tenho o direito de inventar outra vez o que já tive.Por quantas vezes eu quiser.